Difference between revisions of "Algarve, Marcos"
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1899 '''Marcos Algarve''' <br /> | 1899 '''Marcos Algarve''' <br /> | ||
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+ | '''Carta a uma Andorinha''' | ||
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+ | Escrevo-te esta carta para longe,<br /> | ||
+ | Sem bem saber a tua direção;<br /> | ||
+ | Mas o instinto sereno dalgum monge<br /> | ||
+ | Encaminha decerto a minha mão.<br /> | ||
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+ | Evoco ainda as tuas melodias,<br /> | ||
+ | De manhã cedo, sobre o meu beiral;<br /> | ||
+ | Não imaginas quantas arrelias<br /> | ||
+ | Por não ser esta carta a um pardal...<br /> | ||
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+ | Falaria com toda a liberdade<br /> | ||
+ | E o pitoresco exótico da grei;<br /> | ||
+ | Diria com meu ar de santidade<br /> | ||
+ | O bem e o mal que em tudo constatei.<br /> | ||
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+ | As sardinhas de prata do Algarve,<br /> | ||
+ | Hoje comida rara e de valor,<br /> | ||
+ | Só as come um endinheirado alarve<br /> | ||
+ | Ou um voraz e juvenil prior.<br /> | ||
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+ | Ora vê, andorinha, doce amiga,<br /> | ||
+ | Como sentimos já as privações;<br /> | ||
+ | Cada dia que passa nova briga<br /> | ||
+ | Pela falta de couves e feijões.<br /> | ||
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+ | Este inverno tem sido de inclemências,<br /> | ||
+ | De chuvas e de frios glaciais,<br /> | ||
+ | Assim farei as minhas penitências<br /> | ||
+ | Para que Deus não nos castigue mais...<br /> | ||
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+ | A mágoa que apunhala o pensamento<br /> | ||
+ | É uma fera lúgubre e feroz...<br /> | ||
+ | Meiga andorinha! Luz de sentimento!<br /> | ||
+ | Música divinal da tua voz!<br /> | ||
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+ | A Primavera este ano traz agouros,<br /> | ||
+ | Talvez até matanças das mais vis,<br /> | ||
+ | Homens civilizados que são mouros<br /> | ||
+ | Na fúria dos desmandos incivis...<br /> | ||
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+ | De resto, minha linda mensageira,<br /> | ||
+ | Os meus lamentos são de pecador,<br /> | ||
+ | De quem subiu a aspérrima ladeira<br /> | ||
+ | À laia de Geraldo Sem Pavor...<br /> | ||
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+ | Vaidades minhas, velhas fantasias...<br /> | ||
+ | Não venhas cá sem consultar alguém:<br /> | ||
+ | Um sábio que revolva profecias<br /> | ||
+ | Ou jornalista que defenda o bem.<br /> | ||
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+ | Consulta, por exemplo, o Doutor Lopes,<br /> | ||
+ | Que é um sábio complexo e pertinaz,<br /> | ||
+ | De clássicos harpejos e galopes,<br /> | ||
+ | E que apesar de tudo é bom rapaz.<br /> | ||
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+ | Pede conselhos ao Dr. Fuzeta,<br /> | ||
+ | Que é homem atilado e sabedor,<br /> | ||
+ | Romântico dos tempos de Gambeta<br /> | ||
+ | E ironista cruel e gladiador...<br /> | ||
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+ | Se preferes artistas consumados,<br /> | ||
+ | O caso é de ouro como o próprio Sol;<br /> | ||
+ | Escreve com segredos e cuidados<br /> | ||
+ | Ao poeta Guerreiro... Do Tirol.<br /> | ||
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+ | Manda-lhe tirolesas afamadas,<br /> | ||
+ | Ou púdicas donzelas do Sião,<br /> | ||
+ | Para que ele a horas desoladas<br /> | ||
+ | Volte a sentir a sua inspiração.<br /> | ||
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+ | Andorinha saudosa que eu ouvia<br /> | ||
+ | Nas floridas manhãs do mês de Abril,<br /> | ||
+ | Não faças estes anos travessia<br /> | ||
+ | Por estas várzeas tépidas de anil.<br /> | ||
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+ | Pensarás tu na teimosia minha<br /> | ||
+ | Ser um produto de secreto mal?<br /> | ||
+ | O jornalista Julião Quintinha<br /> | ||
+ | Que te elucide como imparcial.<br /> | ||
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+ | À minha secretária está um neto<br /> | ||
+ | Para escrever o que o avozinho<br /> | ||
+ | diz. Que tal não é agora o meu aspeto<br /> | ||
+ | De amargurado S. Francisco Assis!...<br /> | ||
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+ | Tempestades brutais e variadas<br /> | ||
+ | Arrasaram meu forte coração.<br /> | ||
+ | O Mundo com as suas mascaradas<br /> | ||
+ | Aniquila saúde, paz, razão...<br /> | ||
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+ | Águas passadas não moem moínhos | ||
+ | É um velho provérbio popular.<br /> | ||
+ | Castas andorinhas! Até os nossos ninhos<br /> | ||
+ | São flocos engolidos pelo mar...<br /> | ||
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+ | Mar tenebroso que sacode tudo<br /> | ||
+ | E a mesma Humanidade e estupidez...<br /> | ||
+ | Vendo a guerra e o meu neto fico mudo!<br /> | ||
+ | O resto logo vai para a outra vez...<br /> | ||
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+ | '''(Revista Turismo, Janeiro/Fevereiro de 1942)''' | ||
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*'''Notas Biográficas'''<br /> | *'''Notas Biográficas'''<br /> |
Revision as of 16:51, 8 February 2022
- Marcos Algarve
Nome literário de Francisco Marques da Luz
Olhão, 07/10/1875 - Sintra, 08/09/1960
Republicano. Comerciante. Jornalista. Escritor. Presidente da Câmara de Portimão.
Messines - Aldeia onde nasceu João de Deus
Quando te fito, ó solitária aldeia!
Sob áureo manto d'alvacentas brumas,
Julgo viver em branco mar d'espumas
Onde o luar a nossa vista enleia!
Há para mim a grata melopeia
Repleta d'efusão — cismar em umas
Imaginarias, mas formosas plumas,
Com que eu adoro mística epopeia...
Segredam lânguidos, gracis cantares,
Nos perfumados e saudáveis ares,
Os alados e cindidos Orfeus...
Oh divinal tristeza de poetas!
Que assim, por estas plagas indiscretas,
Fundaste o berço de João de Deus!
1899 Marcos Algarve
Carta a uma Andorinha
Escrevo-te esta carta para longe,
Sem bem saber a tua direção;
Mas o instinto sereno dalgum monge
Encaminha decerto a minha mão.
Evoco ainda as tuas melodias,
De manhã cedo, sobre o meu beiral;
Não imaginas quantas arrelias
Por não ser esta carta a um pardal...
Falaria com toda a liberdade
E o pitoresco exótico da grei;
Diria com meu ar de santidade
O bem e o mal que em tudo constatei.
As sardinhas de prata do Algarve,
Hoje comida rara e de valor,
Só as come um endinheirado alarve
Ou um voraz e juvenil prior.
Ora vê, andorinha, doce amiga,
Como sentimos já as privações;
Cada dia que passa nova briga
Pela falta de couves e feijões.
Este inverno tem sido de inclemências,
De chuvas e de frios glaciais,
Assim farei as minhas penitências
Para que Deus não nos castigue mais...
A mágoa que apunhala o pensamento
É uma fera lúgubre e feroz...
Meiga andorinha! Luz de sentimento!
Música divinal da tua voz!
A Primavera este ano traz agouros,
Talvez até matanças das mais vis,
Homens civilizados que são mouros
Na fúria dos desmandos incivis...
De resto, minha linda mensageira,
Os meus lamentos são de pecador,
De quem subiu a aspérrima ladeira
À laia de Geraldo Sem Pavor...
Vaidades minhas, velhas fantasias...
Não venhas cá sem consultar alguém:
Um sábio que revolva profecias
Ou jornalista que defenda o bem.
Consulta, por exemplo, o Doutor Lopes,
Que é um sábio complexo e pertinaz,
De clássicos harpejos e galopes,
E que apesar de tudo é bom rapaz.
Pede conselhos ao Dr. Fuzeta,
Que é homem atilado e sabedor,
Romântico dos tempos de Gambeta
E ironista cruel e gladiador...
Se preferes artistas consumados,
O caso é de ouro como o próprio Sol;
Escreve com segredos e cuidados
Ao poeta Guerreiro... Do Tirol.
Manda-lhe tirolesas afamadas,
Ou púdicas donzelas do Sião,
Para que ele a horas desoladas
Volte a sentir a sua inspiração.
Andorinha saudosa que eu ouvia
Nas floridas manhãs do mês de Abril,
Não faças estes anos travessia
Por estas várzeas tépidas de anil.
Pensarás tu na teimosia minha
Ser um produto de secreto mal?
O jornalista Julião Quintinha
Que te elucide como imparcial.
À minha secretária está um neto
Para escrever o que o avozinho
diz. Que tal não é agora o meu aspeto
De amargurado S. Francisco Assis!...
Tempestades brutais e variadas
Arrasaram meu forte coração.
O Mundo com as suas mascaradas
Aniquila saúde, paz, razão...
Águas passadas não moem moínhos
É um velho provérbio popular.
Castas andorinhas! Até os nossos ninhos
São flocos engolidos pelo mar...
Mar tenebroso que sacode tudo
E a mesma Humanidade e estupidez...
Vendo a guerra e o meu neto fico mudo!
O resto logo vai para a outra vez...
(Revista Turismo, Janeiro/Fevereiro de 1942)
- Notas Biográficas
Marcos Algarve colaborou em inúmeros jornais republicanos, como correspondente local e como redator de jornais como: O Mundo, A Luta, Revista "Alma Nova" e em quase todos os jornais algarvios do seu tempo. Editou "O Xul" e o "Almanach do Algarve". Foi Presidente da Câmara de Portimão e o seu nome é topónimo numa rua de Portimão.
- Bibliografia
"Amor à Francesa" - 1924
"Mistérios da Praia da Rocha", Editora Minerva, Famalicão - 1926
"Calvário Bendito - 1935
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