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Canção camonianafavoritos
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'''Canção camoniana'''<br />
A canção camoniana consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro heroico clássico (10 sílabas), alternando com o quebrado correspondente (seis sílabas).
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'''A canção camoniana''' consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro heroico clássico (10 sílabas), alternando com o quebrado correspondente (seis sílabas).<br />Na canção camoniana é constante a temática amorosa.<br />
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In:<br />
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https://www.infopedia.pt/artigos/$cancao-camoniana
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'''Canção X'''<br />
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Na canção camoniana é constante a temática amorosa.
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Vinde cá, meu tão certo secretário<br />
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dos queixumes que sempre ando fazendo,<br />
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papel, com que a pena desafogo!<br />
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As sem-razões digamos que, vivendo,<br />
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me faz o inexorável e contrário<br />
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Destino, surdo a lágrimas e a rogo.<br />
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Deitemos água pouca em muito fogo;<br />
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acenda-se com gritos um tormento<br />
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que a todas as memórias seja estranho.<br />
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Digamos mal tamanho<br />
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a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,<br />
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a quem já muitas vezes o contei,<br />
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tanto debalde como o conto agora;<br />
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mas, já que para errores fui nascido,<br />
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vir este a ser um deles não duvido.<br />
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Que, pois já de acertar estou tão fora,<br />
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não me culpem também, se nisto errei.<br />
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Sequer este refúgio só terei:<br />
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falar e errar sem culpa, livremente.<br />
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Triste quem de tão pouco está contente!<br />
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Já me desenganei que de queixar-me<br />
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não se alcança remédio; mas quem pena,<br />
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forçado lhe é gritar se a dor é grande.<br />
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Gritarei; mas é débil e pequena<br />
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a voz para poder desabafar-me,<br />
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porque nem com gritar a dor se abrande.<br />
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Quem me dará sequer que fora mande<br />
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lágrimas e suspiros infinitos<br />
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iguais ao mal que dentro n'alma mora?<br />
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Mas quem pode algua hora<br />
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medir o mal com lágrimas ou gritos?<br />
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Enfim, direi aquilo que me ensinam<br />
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a ira, a mágoa, e delas a lembrança,<br />
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que é outra dor por si, mais dura e firme.<br />
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Chegai, desesperados, para ouvir-me,<br />
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e fujam os que vivem de esperança<br />
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ou aqueles que nela se imaginam,<br />
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porque Amor e Fortuna determinam<br />
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de lhe darem poder para entenderem,<br />
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à medida dos males que tiverem.<br />
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Quando vim da materna sepultura<br />
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de novo ao mundo, logo me fizeram<br />
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Estrelas infelices obrigado;<br />
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com ter livre alvedrio, mo não deram,<br />
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que eu conheci mil vezes na ventura<br />
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o milhor, e pior segui, forçado.<br />
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E, para que o tormento conformado<br />
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me dessem com a idade, quando abrisse<br />
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inda minino, os olhos, brandamente,<br />
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um Minino sem olhos me ferisse.<br />
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As lágrimas da infância já manavam<br />
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com üa saudade namorada:<br />
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o som dos gritos, que no berço dava.<br />
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já como de suspiros me soava.<br />
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Co a idade e Fado estava concertado;<br />
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porque quando, por caso, me embalavam,<br />
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se versos de Amor tristes me cantavam,<br />
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logo m adormecia a natureza,<br />
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que tão conforme estava co a tristeza.<br />
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Foi minha ama üa fera, que o destino<br />
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não quis que mulher fosse a que tivesse<br />
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tal nome para mim; nem a haveria.<br />
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Assi criado fui, porque bebesse<br />
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o veneno amoroso, de minino,<br />
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que na maior idade beberia,<br />
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e. por costume, não me mataria.<br />
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Logo então vi a imagem e semelhança<br />
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daquela humana fera tão fermosa,<br />
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suave e venenosa,<br />
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que me criou aos peitos da esperança;<br />
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de quem eu vi despois o original,<br />
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que de todos os grandes desatinos<br />
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faz a culpa soberba e soberana.<br />
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Parece-me que tinha forma humana,<br />
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mas cintilava espíritos divinos.<br />
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Um meneio e presença tinha tal<br />
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na vista dela; a sombra, co a viveza,<br />
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excedia o poder da Natureza.<br />
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Latest revision as of 12:18, 14 November 2024

Canção camoniana
A canção camoniana consiste numa forma lírica que obedece a uma estrutura constante. Esta contém um número de estrofes regulares cujo número de versos varia entre sete e vinte, terminando com uma estrofe menor, correspondente ao envoi da balada francesa. Esta última estrofe servia para invocar a pessoa amada ou para condensar a temática do poema. A canção clássica recorre sempre ao metro heroico clássico (10 sílabas), alternando com o quebrado correspondente (seis sílabas).
Na canção camoniana é constante a temática amorosa.
In:
https://www.infopedia.pt/artigos/$cancao-camoniana
Canção X

Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas quem pena,
forçado lhe é gritar se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
a voz para poder desabafar-me,
porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
lágrimas e suspiros infinitos
iguais ao mal que dentro n'alma mora?
Mas quem pode algua hora
medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
a ira, a mágoa, e delas a lembrança,
que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam,
porque Amor e Fortuna determinam
de lhe darem poder para entenderem,
à medida dos males que tiverem.

Quando vim da materna sepultura
de novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
com ter livre alvedrio, mo não deram,
que eu conheci mil vezes na ventura
o milhor, e pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
me dessem com a idade, quando abrisse
inda minino, os olhos, brandamente,
manda que, diligente,
um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
com üa saudade namorada:
o som dos gritos, que no berço dava.
já como de suspiros me soava.
Co a idade e Fado estava concertado;
porque quando, por caso, me embalavam,
se versos de Amor tristes me cantavam,
logo m adormecia a natureza,
que tão conforme estava co a tristeza.

Foi minha ama üa fera, que o destino
não quis que mulher fosse a que tivesse
tal nome para mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
o veneno amoroso, de minino,
que na maior idade beberia,
e. por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
daquela humana fera tão fermosa,
suave e venenosa,
que me criou aos peitos da esperança;
de quem eu vi despois o original,
que de todos os grandes desatinos
faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
na vista dela; a sombra, co a viveza,
excedia o poder da Natureza.

(...)