Difference between revisions of "Redol, Alves - Livros Proibidos"

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*'''Alves Redol''' (1911–1969)
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*'''Alves Redol''' (1911–1969)<br />
Escritor português, natural de Vila Franca de Xira, António Alves Redol nasceu a 29 de dezembro de 1911 e faleceu 29 de novembro de 1969. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto.
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Escritor português, natural de Vila Franca de Xira. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas socioeconómicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.
  
Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas sócio-económicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.
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*'''Livro proibido - Gaibéus'''
  
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.<br />
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*'''Excerto 1'''
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.<br />
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Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.<br />Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.<br />E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.<br />Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…<br />E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...<br />Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.<br />E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.<br />Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.<br />  
 
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…<br />
 
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...<br />
 
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.<br />
 
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.<br />
 
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.<br />
 
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(…)<br />
 
<br />
 
Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carrril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ain¬da àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.<br />
 
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.<br />
 
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.<br />
 
—...  o  Senhor é  convosco...<br />
 
Agatanhando  as  ervas,  subiu  ao  alto  do  valado  e  sentou-se,  como  se  ali  procurasse  refúgio.<br />
 
Tossiu mais — e rezou ainda.<br />
 
—...  bendito  o  fruto  do vosso ventre...<br />
 
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca,  derribada  na  alma.<br />
 
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.<br />
 
E a velha chorou num pranto manso.<br />
 
A cambalear, carril fora, vinham dois homens cantando:<br />
 
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... Só por morte eu o vinho deixava<br />
 
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Pararam a olhar a velha e riram, quando notaram que lhe caíam lágrimas nas faces golpeadas pelos anos.<br />
 
— Parece que vem prá morte, Mãe Santíssima!<br />
 
— Bem morte…<br />
 
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Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.<br />  
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*'''Excerto 2'''
As  cachopas beliscam-se  e  riem  —  mas o  seu  riso soa a  falso.<br />  
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Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ainda àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.<br />De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.<br />Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.<br />—...  o  Senhor é  convosco...<br />Agatanhando  as  ervas,  subiu  ao  alto  do  valado  e  sentou-se,  como  se  ali  procurasse  refúgio.<br />Tossiu mais — e rezou ainda.<br />—...  bendito  o  fruto  do vosso ventre...<br />Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca,  derribada  na  alma.<br />Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.<br />E a velha chorou num pranto manso.
Levam  nos  quadris  casacos  velhos  assolapados  de  remendos  que  lhes  defenderam  os  rins  da  brasa  do  sol.  Os rapazes  passam  agora  pelas  rãs  que  chapinham  nos  char¬cos e  não  atiram  torrões  para  as  espantar.<br />
+
 
As  rãs  coaxam  a  sua  liberdade.<br />
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*'''Excerto 3'''
As  flores  crescidas  nas  travessas  dobram-se  e  desfolham-se  à  passagem  do  rancho  e  só  a  erva  unha-gata  o defronta,  picando as  pernas às  raparigas.  Os  ceifeiros  que chegam  ao  carril  tiram  as  caldeiras  dos  ganchos  do  cambaricho  e  sentam -se  no  chão  ou  na  linha  erguida  à  borda do  arrozal.  
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Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.<br />As  cachopas beliscam-se  e  riem  —  mas o  seu  riso soa a  falso.<br />Levam  nos  quadris  casacos  velhos  assolapados  de  remendos  que  lhes  defenderam  os  rins  da  brasa  do  sol.  Os rapazes  passam  agora  pelas  rãs  que  chapinham  nos  charcos e  não  atiram  torrões  para  as  espantar.<br />As  rãs  coaxam  a  sua  liberdade.<br />As  flores  crescidas  nas  travessas  dobram-se  e  desfolham-se  à  passagem  do  rancho  e  só  a  erva  unha-gata  o defronta,  picando as  pernas às  raparigas.  Os  ceifeiros  que chegam  ao  carril  tiram  as  caldeiras  dos  ganchos  do  cambaricho  e  sentam -se  no  chão  ou  na  linha  erguida  à  borda do  arrozal.<br />Já  as  mulheres  que  deixaram  os  filhitos  ao  abandono por  ali  os  apertam  entre  os  braços  e  os  amimam,  beijando-lhes  as  faces  sujas  de  Terra,  amassada  com  lágrimas. E  eles  buscam-lhes,  com  as  bocas  rebentadas  de  feridas, onde  as  moscas  pousam  e  o  ranho  criou  crosta,  os  peitos escorridos,  beliscando-lhes  nas  blusas  a  sua  fome.<br />— Ah,  raça  de  cachopo!  Dá-lhe  de  mama,  mulher.<br />— Vai  blusa  e  tudo,  se  não  lhe  acodes.  Isso  é  que  é um comilão!<br />A  mãe  afaga-lhe  os  cabelitos  ralos,  tendo  nos  dedos duros  carícias  brandas  que  o  fazem  pairar  e  sacudir  o corpo  em  sacões  de  alegria.<br />— Ah, rico filho,  tu  tens  fominha,  não  tens?...<br />— Come  tu,  cachopa,  que  bem  no  precisas.  Se  não tens  tento  na  cabeça...<br />E a mãe tosse,  pondo  a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas  duas  rosetas  brandas,  que  se  desfazem  depois na  cera  do  rosto.  Ergue  o  filho  nos  braços,  como  a  vê-lo bem ,  brincando-lhe  nos  olhos  duas  gotas  que  lhes  dão mais  brilho.<br />—  Ah,  meu  Zezinho...<br />E  puxa-o  de  novo  a  si,  beijando-lhe  o ventre  inchado.
Já  as  mulheres  que  deixaram  os  filhitos  ao  abandono por  ali  os  apertam  entre  os  braços  e  os  amimam,  beijando-lhes  as  faces  sujas  de  Terra,  amassada  com  lágrimas. E  eles  buscam-lhes,  com  as  bocas  rebentadas  de  feridas, onde  as  moscas  pousam  e  o  ranho  criou  crosta,  os  peitos escorridos,  beliscando-lhes  nas  blusas  a  sua  fome.
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— Ah,  raça  de  cachopo!  Dá-lhe  de  mama,  mulher.<br />
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*'''Livro Proibido - A Barca dos Sete Lemes'''<br />
— Vai  blusa  e  tudo,  se  não  lhe  acodes.  Isso  é  que  é um comilão!<br />
+
 
A  mãe  afaga-lhe  os  cabelitos  ralos,  tendo  nos  dedos duros  carícias  brandas  que  o  fazem  pairar  e  sacudir  o corpo  em  sacões  de  alegria.<br />
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'''A Barca dos Sete Lemes''' romance que assinala o início da ficção neorrealista do autor.
— Ah, rico filho,  tu  tens  fominha,  não  tens?...<br />
 
— Come  tu,  cachopa,  que  bem  no  precisas.  Se  não tens  tento  na  cabeça...<br />
 
E a mãe tosse,  pondo  a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas  duas  rosetas  brandas,  que  se  desfazem  depois na  cera  do  rosto.  Ergue  o  filho  nos  braços,  como  a  vê-lo bem ,  brincando-lhe  nos  olhos  duas  gotas  que  lhes  dão mais  brilho.<br />
 
—  Ah,  meu  Zezinho...<br />
 
E  puxa-o  de  novo  a  si,  beijando-lhe  o ventre  inchado.<br />
 
Todo  o  rancho  está  no  carril  para  o  almoço<br />
 
Formam  grupos  dispersos,  caldeiras  ao  lado  das  foices,  e  vão  mergulhando  as  colheres  no  caldo  negro  dos feijões, onde ralas olhas de azeite põem pontos doirados.<br />
 
'''Gaibéus, Alves Redol'''<br />
 
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    Naquela  noite,  na  praia  de  areia fina,  onde  os  avieiros pelo  Inverno vêm  puxar as  redes,  só se  ouvia  o  marulhar brando  do Tejo  a  acariciá-los.
 
    Estava  noite  de  luar.  Um  luar  brando  de  Outono  que vestia  as  coisas de  penumbra  triste.  Piscavam luzes  na  ou¬tra margem, dispersas aqui e além, mais ali reunidas, como num  concilio  de  estrelas.  Eram  constelações  de  vidas,  to¬das  iguais vistas de  longe.
 
    A  luz  que  iluminava  o  senhor  não  brilhava  mais  do que  a  outra  que  alumiava  o  servo.  Ali  não  havia  casebres,  nem  palácios.  Todas  eram  irmãs,  como  as  estrelas da  Estrada  de  Santiago  que  polvilhavam  de  oiro  o  azul-negro.
 
    Dali  os  seus  anseios  partiam para  longas viagens,  em ¬balados  pela  dolência  das  marés,  com  velas  enfunadas pelo  sopro  da  imaginação  de  cada  qual.  Até  ele  vinha  o passado,  qual  história  estranha  dita  pelo  Tejo,  numa  voz meiga  e  doce.  E  o  passado  era  triste  —  mais  triste  que  o badalar de  um  chocalho vindo  de  longe.
 
    Ambições  naufragadas,  restos  de  alegrias  e  desditas, de que tinha vaga  recordação.  O  presente  era amargo,  tão doloroso  como  o  passado. Mas ali,  naquele  silêncio,  guardava  sonhos de  criança, como se  nunca  tivesse  entrado  na  vida  e  ainda  a  julgasse unia  floresta  de  frutos  de  oiro.
 
    Era  ali,  sentado  na  praia,  de  corpo  alquebrado  pelas soalheiras  e  pelo  trabalho,  que  vinha  fazer  a  sua  viagem de promissão.  Na  dolência vaga  da  noite  acompanhava-o, às vezes,  o trapejar de velas  no virar dos bordos.
 
    E  ficava-se  a  olhar  as  fragatas,  embarcando  nelas  os seus  anseios  sempre jovens.
 
    A  carreira  daqueles  barcos  era  curta  e  não  chegava ao  mar.  Descarregavam  em  qualquer  porto  das  margens e  voltavam  de  novo,  rio  acima,  em  viagem  decorada. E  todos  os  dias  e  todas  as  noites,  enquanto  houvesse  fretes:  até o tempo lhes consumir as carcaças e serem vendi¬dos  para  encalhar nos valados.
 
    Barcos  irmãos  da  sua vida  de  alugado.
 
    Também já  andara  p or esse  mundo,  embarcado  como mercadoria.  Encontrara homens de outras raças, raças que afinal  eram  irmãs  da  sua.  Nunca  julgara  isso.  Sabia  agora que  o Agostinho Serra  pertencia  a  outra  raça  e  que  a  sua era  a  mesma  dos  negros descarregadores  dos molhes  dos portos  por  onde  andara.  Irmão  dos  negros  que  colhiam café  e  pilavam  milho,  por  essas  terras  distantes  de  oiro, e  febres.       
 
    Fora  e voltara — sempre  passageiro de  terceira.
 
    Estava agora  ali,  trabalharia amanhã  no fundo de uma mina  a  viver  em  trevas  —  a  sua  vida  assemelhava-se  a uma mina em  trevas. Mas caminhava nela e tinha anseios, porque  sabia  haver  lá  em  cima  outra  vida  com  luz  e  ar. Vivia  na  sub-humanidade  —  morava  na  cave  de  um  prédio  de  muitos  andares,  onde,  nos  altos,  havia  lugar  para ele  e  para  os  companheiros.
 
    O  canavial,  ali  perto,  falou  à  noite.  E  a  noite  não  lhe respondeu.  Só  as  águas  do Tejo  contavam  histórias  estranhas  de  dramas  seus.
 
    Vinha  ai  a  maré  alta.  Ele  desconhecia  ainda  que  a vida  dos ho-mens  é  um  rio com marés,  um rio com fluxos e  refluxos  que  um  dia  o  havia  de  trazer  para  a  luz. 
 
                                                                                                  Gaibéus, Alves Redol
 
  
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Alves Redol - San Payo (Arquivo de Documentação Fotográfica, DGPC).png Gaibéuslivro.jpg BARCA-DOS-SETE-LEMES-.jpg Gaibéuscensura.jpg

  • Alves Redol (1911–1969)

Escritor português, natural de Vila Franca de Xira. Figura central do Neorrealismo português, foi autor de uma vasta obra ficcional, que inclui o teatro e o conto. Empenhado na luta de resistência ao regime salazarista, compreendeu a literatura como forma de intervenção social e, nesse mesmo ano, surgiu o seu primeiro romance, Gaibéus, cujo assunto, relacionado com problemas socioeconómicos vividos pelos ceifeiros, fez desta obra o marco do aparecimento do Neorrealismo.

  • Livro proibido - Gaibéus
  • Excerto 1
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de presilhas e chapéus puxados para os olhos, ficaram-lhes mais som brilho o olhar dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro irmãos sacos e foices, paus e caldeiras.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.
Sentiam saudades da terra que eles negavam o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe…
E se lá havia pão para todos! Mal tínhamos acabado de terminar dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d’água. Era um êxodo de desgrana e susto. Que iriam, encontrar ali?!...
Algumas encomendas desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.
Courelas pequenas, onde se desunhavam a trabalhar, passando a mãos estranhas que nunca as tinham apalpado à enxada, logo depois feitas courelas grandes com outras e outras que se lhes juntavam.
  • Excerto 2
Esfalfadas, a arfar, as velhas arrastavam os pés, a quererem acompanhar as outras, e levantavam poeira do carril, com o rebanho de volta à malhada. Vinham com elas as que traziam os filhos ao colo, chupando-lhes os peitos sem viço, e a cachopada mais tenra, mal habituada ainda àqueles trabalhos de galé. Alguns iam conhecer patrão pela primeira vez. Já os tocava, porém, a mesma certeza dos que andavam a vida inteira a labutar sem norte.
De roupas desajeitadas, feitas para os outros, de panamás negros a encoifar-lhes os rostos, onde os olhos assemelhavam vaga-lumes na noite funda que os cobria, embora o Sol andasse nas alturas a chapinhar luz.
Uma velha deixou-se cair no valado, a tossir e a rezar. Os membros aquebrantados pareciam ter-lhe abandonado o corpo e ali ficara sem forças para ir no rastro do rancho.
—... o Senhor é convosco...
Agatanhando as ervas, subiu ao alto do valado e sentou-se, como se ali procurasse refúgio.
Tossiu mais — e rezou ainda.
—... bendito o fruto do vosso ventre...
Espraiou os olhos pela campina fora, mas sentiu-se só. Só como nunca, derribada na alma.
Aqueles troncos, doridos nos estertores do cerne, apareciam-lhe como o espelho da sua própria angústia.
E a velha chorou num pranto manso.
  • Excerto 3
Foram saltando aos camalhões, de braços a bambolear pela fadiga, pernas em cadência frouxa e troncos  engibados  pendidos  à  terra.
As cachopas beliscam-se e riem — mas o seu riso soa a falso.
Levam nos quadris casacos velhos assolapados de remendos que lhes defenderam os rins da brasa do sol. Os rapazes passam agora pelas rãs que chapinham nos charcos e não atiram torrões para as espantar.
As rãs coaxam a sua liberdade.
As flores crescidas nas travessas dobram-se e desfolham-se à passagem do rancho e só a erva unha-gata o defronta, picando as pernas às raparigas. Os ceifeiros que chegam ao carril tiram as caldeiras dos ganchos do cambaricho e sentam -se no chão ou na linha erguida à borda do arrozal.
Já as mulheres que deixaram os filhitos ao abandono por ali os apertam entre os braços e os amimam, beijando-lhes as faces sujas de Terra, amassada com lágrimas. E eles buscam-lhes, com as bocas rebentadas de feridas, onde as moscas pousam e o ranho criou crosta, os peitos escorridos, beliscando-lhes nas blusas a sua fome.
— Ah, raça de cachopo! Dá-lhe de mama, mulher.
— Vai blusa e tudo, se não lhe acodes. Isso é que é um comilão!
A mãe afaga-lhe os cabelitos ralos, tendo nos dedos duros carícias brandas que o fazem pairar e sacudir o corpo em sacões de alegria.
— Ah, rico filho, tu tens fominha, não tens?...
— Come tu, cachopa, que bem no precisas. Se não tens tento na cabeça...
E a mãe tosse, pondo a mão na boca; vêm-lhe às faces afiladas duas rosetas brandas, que se desfazem depois na cera do rosto. Ergue o filho nos braços, como a vê-lo bem , brincando-lhe nos olhos duas gotas que lhes dão mais brilho.
— Ah, meu Zezinho...
E puxa-o de novo a si, beijando-lhe o ventre inchado.
  • Livro Proibido - A Barca dos Sete Lemes
A Barca dos Sete Lemes  romance que assinala o início da ficção neorrealista do autor.


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