Difference between revisions of "Camões e o Algarve"

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search
 
(21 intermediate revisions by the same user not shown)
Line 1: Line 1:
  
 +
[[File:Camões e o Algarve1.jpg|350px]]
 +
== '''Camões e o Algarve: Ecos da História e da Poesia''' ==
  
  
 +
'''O Algarve''', embora não seja uma presença constante na obra de '''Luís de Camões''', surge em momentos chave de "Os Lusíadas", evocando tanto a história de conquistas militares quanto as paisagens marcantes da região.
  
== '''Presença de Camões no Algarve antes do Exílio''' ==
+
Nas referências que o poeta faz '''ao Algarve''', encontramos um território de reconquista, de lutas heroicas e vitórias que ecoam pelo tempo. '''Silves, Tavira, o Sacro Promontório, e a Ribeira de Boina''' são apenas algumas das paisagens que ganham vida nas palavras de '''Camões''', unindo o mar, a história e a mitologia. Camões, ao narrar as façanhas de heróis como Vasco da Gama e os navegadores portugueses, faz do Algarve um ponto de partida não apenas para as aventuras dos descobrimentos, mas também para o nascimento de um império.
<br />
 
 
 
'''Teófilo Braga''' refere que '''Camões''' passou pelo Algarve, onde terá estado refugiado, antes de partir para a África, mais concretamente na Quinta de Santo António, em Monchique, onde terá escrito o poema  '''''Por meio de umas serras mui fragosas''''' dedicado à ribeira de Boina:<br /> .
 
 
 
 
 
Por meio de umas serras mui fragosas,<br />
 
cercadas de silvestres arvoredos,<br />
 
retumbando por ásperos penedos,<br />
 
correm perenes águas deleitosas.<br />
 
Na ribeira de Boina, assi chamada,<br />
 
celebrada -<br />
 
porque em prados<br />
 
esmaltados<br />
 
com frescura<br />
 
de verdura,<br />
 
assi se mostra amena, assi graciosa,<br />
 
que excede a qualquer outra mais fermosa -<br />
 
<br />
 
as correntes se vêem que, aceleradas,<br />
 
as aves regalando e as boninas,<br />
 
se vão a entrar nas águas neptuninas<br />
 
por diversas ribeiras derivadas.<br />
 
Com mil brancas conchinhas a áurea areia<br />
 
bem se arreia;<br />
 
voam aves;<br />
 
mil suaves<br />
 
passarinhos<br />
 
nos raminhos<br />
 
acordemente estão sempre cantando,<br />
 
com doce acento os ares abrandando.<br />
 
<br />
 
O doce rouxinol num ramo canta,<br />
 
e de outro o pintassilgo lhe responde.<br />
 
A perdiz de entre a mata, em que se esconde,<br />
 
o caçador sentindo, se levanta;<br />
 
voando vai ligeira mais que o vento,<br />
 
vai buscando;<br />
 
porém quando<br />
 
vai fugindo,<br />
 
retinindo<br />
 
trás ela mais veloz a seta corre,<br />
 
de que ferida logo cai e morre.<br />
 
<br />
 
Aqui Progne, de um ramo em outro ramo,<br />
 
co peito ensanguentado anda voando,<br />
 
cibato para o ninho indo buscando;<br />
 
a leda codorniz vem ao reclamo<br />
 
do sagaz caçador, que a rede estende,<br />
 
e pretende<br />
 
com engenho<br />
 
fazer dano<br />
 
à coitada,<br />
 
que enganada<br />
 
duns esparzidos grãos de louro trigo,<br />
 
nas mãos vai a cair de seu imigo.<br />
 
<br />
 
Aqui soa a calhandra na parreira;<br />
 
a rola geme; palra o estorninho;<br />
 
sai a cândida pomba de seu ninho;<br />
 
o tordo pousa em cima da oliveira.<br />
 
Vão as doces abelhas sussurrando,<br />
 
e apanhando<br />
 
o rocio<br />
 
fresco e frio<br />
 
por o prado<br />
 
de erva ornado,<br />
 
com que o bravo licor fazem, que deu<br />
 
à humana gente a indústria de Aristeu.<br />
 
<br />
 
Aqui as uvas luzidas, penduradas<br />
 
das pampinosas vides, resplandecem;<br />
 
as frondíferas árvores se oferecem<br />
 
com diferentes frutos carregadas;<br />
 
os peixes n'água clara andam saltando<br />
 
levantando<br />
 
as pedrinhas,<br />
 
e as conchinhas<br />
 
rubicundas,<br />
 
que as jucundas<br />
 
ondas consigo trazem, crepitando<br />
 
por a praia alva com ruído brando.<br />
 
<br />
 
Aqui por entre as selvas se levantam<br />
 
animais calidónios, e os veados<br />
 
na fugida inda mal assegurados,<br />
 
porque do som dos próprios pés se espantam.<br />
 
Sai o coelho; a lebre sai manhosa<br />
 
da frondosa<br />
 
breve mata,<br />
 
donde a cata<br />
 
cão ligeiro.<br />
 
Mas primeiro<br />
 
que ela ao contrário férvido se entregue,<br />
 
às vezes deixa em branco a quem a segue.<br />
 
<br />
 
Luzem as brancas e purpúreas flores,<br />
 
com que o brando Favónio a terra esmalta;<br />
 
o fermoso Jacinto ali não falta,<br />
 
lembrado dos antigos seus amores;<br />
 
inda na flor se mostram esculpidos<br />
 
os gemidos;<br />
 
aqui Flora<br />
 
sempre mora;<br />
 
e com rosas<br />
 
mais fermosas,<br />
 
com lírios e boninas mil fragrantes,<br />
 
alegra os seus amores inconstantes.<br />
 
<br />
 
Aqui Narciso em líquido cristal<br />
 
se namora de sua fermosura;<br />
 
nele os pendentes ramos da espessura<br />
 
debuxando-se estão ao natural.<br />
 
Adónis, com que a linda Citereia<br />
 
se recreia,<br />
 
bem florido,<br />
 
convertido<br />
 
na bonina<br />
 
que Ericina<br />
 
por imagem deixou de qual seria<br />
 
aquele por quem ela se perdia.<br />
 
<br />
 
Lugar alegre, fresco, acomodado<br />
 
para se deleitar qualquer amante,<br />
 
a quem com sua ponta penetrante<br />
 
o cego Amor tivesse derribado;<br />
 
e para memorar ao som das águas<br />
 
suas mágoas<br />
 
amorosas,<br />
 
as cheirosas<br />
 
flores vendo,<br />
 
escolhendo,<br />
 
para fazer preciosas mil capelas,<br />
 
e dar per grão penhor a Ninfas belas.<br />
 
<br />
 
Eu delas, por penhor de meus amores,<br />
 
uma capela à minha deusa dava;<br />
 
que lhe queria bem, bem lhe mostrava<br />
 
o bem-me-queres entre tantas flores;<br />
 
porém, como se fora malmequeres,<br />
 
os poderes<br />
 
da crueldade<br />
 
na beldade<br />
 
bem mostrou.<br />
 
Desprezou<br />
 
a dádiva de flores; não por minha,<br />
 
mas porque muitas mais ela em si tinha.<br />
 
<br />
 
 
 
Este poema apresenta uma descrição rica e detalhada de uma paisagem idílica, centrada na Ribeira de Boina, localizada no Algarve, perto de Portimão. Camões exalta as belezas naturais da região, desde as águas cristalinas até a abundância de flora e fauna, transmitindo um ambiente paradisíaco e fértil.
 
 
 
A natureza é personificada e ganha vida: os rios fluem como símbolos de constância, as aves cantam harmoniosamente, os frutos e flores surgem em abundância, e até as figuras mitológicas, como Narciso, Adônis e Flora, são invocadas para enaltecer a perfeição do lugar. Apesar de toda essa beleza, o poeta insere uma nota melancólica ao final, mencionando o desdém da sua "deusa" pela dádiva de flores que ele lhe oferece, simbolizando o amor não correspondido.
 
 
 
Integração na Vida e Obra de Camões
 
Ligação com o Algarve
 
Este poema reforça a conexão de Camões com o Algarve, especialmente com a Ribeira de Boina, que ele celebra com tanto detalhe e emoção. Segundo Teófilo Braga, a presença do poeta na região aconteceu durante sua viagem para a África, quando ele teria passado pelo Algarve, e este poema é visto como uma possível memória desse período.
 
 
 
Temas Universais de Camões
 
O poema combina dois dos temas centrais da obra de Camões:
 
 
 
A exaltação da natureza: Aqui, Camões revela sua habilidade em pintar paisagens naturais com precisão e lirismo, seguindo a tradição renascentista de enaltecer a harmonia do mundo natural.
 
O amor e a rejeição: Mesmo em meio à celebração da natureza, o poema encerra com uma reflexão melancólica sobre o amor não correspondido, um tema recorrente na obra do poeta, tanto nos seus sonetos quanto em Os Lusíadas. A rejeição da sua "deusa" reflete a dor pessoal que Camões tantas vezes poetizou.
 
Estilo e Contexto Literário
 
A descrição bucólica e idealizada do poema remete ao gênero pastoral, em que a natureza é o cenário perfeito para reflexões sobre o amor e a vida. Ao mesmo tempo, a presença de referências mitológicas (Narciso, Adônis, Flora) insere o poema na tradição clássica renascentista, mostrando a erudição do poeta.
 
 
 
Reflexo de sua Vida Pessoal
 
A menção à rejeição no final pode estar ligada à experiência pessoal de Camões com amores frustrados e desilusões, vivências que marcaram sua vida atribulada e seu exílio. A relação com o Algarve pode também ser interpretada como uma tentativa de eternizar o local em versos, associando-o ao universo emocional do poeta.
 
 
 
Este poema evidencia a habilidade de Camões em mesclar o belo natural com o sentimento humano, criando uma obra que transcende a mera descrição e atinge reflexões profundas sobre a vida e o amor. É uma peça representativa da sua capacidade de transformar lugares e emoções em poesia imortal.
 

Latest revision as of 16:20, 24 February 2025

Camões e o Algarve1.jpg

Camões e o Algarve: Ecos da História e da Poesia

O Algarve, embora não seja uma presença constante na obra de Luís de Camões, surge em momentos chave de "Os Lusíadas", evocando tanto a história de conquistas militares quanto as paisagens marcantes da região.

Nas referências que o poeta faz ao Algarve, encontramos um território de reconquista, de lutas heroicas e vitórias que ecoam pelo tempo. Silves, Tavira, o Sacro Promontório, e a Ribeira de Boina são apenas algumas das paisagens que ganham vida nas palavras de Camões, unindo o mar, a história e a mitologia. Camões, ao narrar as façanhas de heróis como Vasco da Gama e os navegadores portugueses, faz do Algarve um ponto de partida não apenas para as aventuras dos descobrimentos, mas também para o nascimento de um império.