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Leitura – O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
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*'''Miguel Torga''' (1907 - 1995)
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Miguel Torga, pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha, foi poeta, romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e médico. Ativista cívico, apoiou Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) nas suas candidaturas à Presidência da República contra os candidatos do regime. Intelectuais e autores portugueses e estrangeiros, como entre outros, Vicente Alexandre, Sophia de Mello Breyner Andresen  e Jean-Baptiste Aquarone, apresentaram e apoiaram por três vezes a candidatura de Torga ao Prémio Nobel da Literatura.
  
Foi nessa pátria, assim discretamente entendida como chão sagrado de amor e de prova, que me dispus a continuar, com redobrada aplicação, o exercício de curar e o suplício de escrever, sem ilusões de qualquer ordem quanto às dificuldades da empresa. O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma covardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, soma, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes.
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*'''Livros Censurados'''
Mas, embora consciente de tudo isso, iria lutar até às últimas forças. A trabalhar como trabalhava — durante o dia a ver doentes e parte da noite agarrado aos livros —, em poucos meses estaria apto a usar honestamente o espéculo e o bisturi. Quanto à caneta, se não vinha mais aparada da viagem, trazia pelo menos outra humildade. Em face de alguns exemplos cruciantes, ficara a saber que é lento e penoso o caminho da arte, e que nele só o esforço aturado conta verdadeiramente. O triunfo viria depois, se viesse.
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Várias obras de Torga foram alvo de censura e nesta página da wiki vamos ler excertos de '''Bichos''', '''A Criação do Mundo''' e '''Diário'''. Torga esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro '''O Quarto dia da Criação do Mundo''', onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).<br /><br />[[File:Torga Miguel-Bichos-Despacho-da-Censura-excerto.jpg|514px]][[File:TorgaMiguel-Diario-IV-volume-Censura-excerto.jpg]]<br />[[File:Torga Miguel-ACriacaoDoMundo-Censura-excerto-.jpg|900px]]
                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
 
  
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*'''Excerto 1 - Bichos, "Nero"'''
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Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra.
  
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*'''Excerto 2 - Bichos, "Mago"'''                                                                                   
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Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem ação, bambo e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha de acabar semelhante vergonha! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! De resto, ali tinha já a primeira demonstração: ela a ressonar sozinha na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara dos seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre era a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e outras é que chegara àquela linda situação ...
  
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*'''Excerto 3 - Bichos, "Madalena"'''
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Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha descarnada e hostil. Cada fragão de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns nos outros, num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além.<br />Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Já agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz. Dera o tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo - a nódoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava. Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a façanha, pô-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto.<br />- Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!...<br />Fez-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele.
  
Entrámos, mandou-me sentar, instalou-se à secretária, acendeu um cigarro e tirou algumas fumaças fundas, como que a encher o peito de energia.
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*'''Excerto 4 - Bichos, “Jesus”'''
Apertado na farda justa, congestionado, parecia mais um monte de gordura contrafeita do que a encarnação da autoridade. Mas era-o mesmo assim, afundado no cadeirão de espaldar e afiançado por dois retratos severos — o do Chefe do Estado e o do Presidente do Conselho — pendurados na parede a que dava costas. — Pois, como acabei de dizer, recebi ordens, e, embora me custe, o meu dever é cumpri-las…
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Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.<br />E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.<br />Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.<br />A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.<br />E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe.
— Evidentemente.
 
Um pesado reposteiro adamascado a guarnecer a porta de entrada enchia a sala de solenidade. E o guião do posto, bordado a oiro, erguido a um canto, hirto como um catavento em dias de calmaria, era peremptório na legenda que o emoldurava:
 
Pela Ordem e pela Pátria — De maneira que tenha paciência, vai fazer o favor de prestar aqui algumas declarações que serão reduzidas a auto.
 
E tocou uma campainha a chamar um dactilógrafo.
 
— Pelo que vejo, a coisa é grave!
 
— Sim, realmente… Quer dizer: depende…
 
— De qualquer maneira, estou à sua disposição…
 
Meteu o indicador entre o pescoço e a gola do dólman, e tentou alargá-la.
 
— Ora bem, o senhor doutor escreveu um livro…
 
— Escrevi vários…
 
— Refiro-me ao último…
 
— Que acaba de ser apreendido…
 
— De facto. Também recebi instruções para o retirar das livrarias cá da cidade. O que já fiz, de resto. E a propósito: de quantos exemplares foi a edição?
 
— Trezentos.
 
?!
 
— Só.
 
— Parece que defende nele ideias subversivas… Eu confesso que ainda o não li…
 
— É pena. Pelo menos podia falar com conhecimento de causa.
 
— Isso era. Mas, para o caso que nos preocupa, pouco interessa.
 
Defende ou não?
 
— Nem uma coisa, nem outra.
 
— Essa agora!
 
— O senhor comandante precisa de ler o livro.
 
— Vou ler.
 
— Então leia, e depois conversamos…
 
— Conversar, temos de conversar agora… Não é agradável o meu papel, creia, mas alguém tinha de estar aqui… Foi o Dr. que pagou as despesas da impressão?
 
— Claro! Quem havia de ser? Nem percebo onde quer chegar!
 
Vem lá indicado com todas as letras: edição do autor.
 
— Podia ser uma maneira airosa de fazer as coisas… E estar por detrás qualquer organização…
 
Confiado e até um pouco divertido a princípio, à medida que o interrogatório avançava, sentia crescer dentro de mim uma bruma de apreensão cada vez mais espessa. Que significava, afinal, tudo aquilo? Estava diante de uma formalidade ou metido num sarilho? E comecei a defender-me, iludindo as questões, a avaliar a segunda intenção das perguntas, a pesar as respostas, a divagar, não deixando ao mesmo tempo de tentar compreender a situação embaraçosa daquele homem a quem valera numa hora de aperto, e que via ainda ensacado no pijama de flanela, esquecido do posto e dos galões, desfigurado, a gemer como uma criança:
 
— Não me deixe morrer, pelo amor de Deus! Lembre-se que tenho quatro filhos para criar…
 
                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
 
  
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*'''Poemas do livro - Diário IV:'''
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[[File:TorgaPoemaEmDiario4-1.png|300px]] [[File:TorgaPoemaEmDiario4-2.png|300px]] [[File:TorgaPoemaEmDiario4-3.png|300px]] [[File:TorgaPoemaEmDiario4-4.png|300px]]
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[[File:TorgaPoemaEmDiario4-5.png|300px]] [[File:TorgaPoemaEmDiario4-6.png|300px]] [[File:TorgaPoemaEmDiario4-7.png|300px]] [[File:TorgaPoemaEmDiario4-8.png|300px]]
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[https://drive.google.com/file/d/1iu1OjhQmN3NNuqD-UuYJ8m9xQayVOsIM/view?usp=sharing Nota: nesta ficheiro txt pode encontrar estes e mais 16 poemas do livro Diário IV.]<br />
  
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*'''Excerto 5 - A Criação do Mundo – Os dois Primeiros Dias'''
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Uma tarde o mestre deixou-se dormir à secretária. E, tirante o Reinaldo, que teve o descaramento de lhe ir pintar uns bigodes, todos faziam o possível para o não acordar. Era um feriado que nos caía do céu. Os grandes apanhavam moscas, e os pequenos seguiam o exemplo de cima, e ressonavam pacificamente. Às tantas, o Albertino entrou, como de costume, sem dar cavaco a ninguém. Vinha a modos de quem não quer a coisa, a fingir-se distraído. Mas assim que deu conta que o mestre dormia, chegou-se afoitamente às carteiras da frente com ar misterioso. Sentou-se na ponta do meu banco, ao lado do Jerónimo, e, perante o nosso assombro, tirou do bolso uma pistola de dois canos.                                     
  
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*'''Excerto 6 - O Terceiro dia da Criação do Mundo'''
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Toda a região estava infestada de lepra. E, muito embora tivesse observado no hospital muitos infelizes atacados da mesma doença, causava-me impressão vê-los ali, disseminados como cogumelos podres na paisagem sã. Havia não sei que contradição alarmante entre a beleza do panorama grandioso e os corpos corroídos dos desgraçados. Orelhas desfeitas, mãos decepadas, pés desconformes, enquadrados numa moldura de olímpica serenidade, que o mar, lá na distância, rematava, o azul das águas a fundir-se no azul do céu.<br />— Então de que se queixa?<br />— Dos rins…<br />Não falava do outro mal que a devorava, que sabia sem cura e a que se acostumara. Perguntava a mim mesmo por que razão nenhum daqueles miserandos punha termo à existência, se libertava da maldição. Da memória de ninguém havia um caso de suicídio. Pelo contrário. Obstinados, persistentes, agarravam-se à vida, e acabavam por exibir naturalmente a pestilência. O Zé do Cardeal, conhecido em toda a região, já sem nariz, chegava ao ponto de trazer sempre no bolso um copo para beber vinho nas tabernas das terras por onde passava.<br />— Vamos lá ver…<br />Fazia de conta que não notava os nódulos encarniçados pelo tronco acima.<br />— Isto vai melhorar. Toma uns comprimidos…
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*'''Excerto 7 - O Quarto dia da Criação do Mundo'''
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Meu querido filho:<br />Cá recebemos a tua carta que ficamos bem contentes por tu chegares são e salvo que estávamos em cuidos que te acontecesse alguma coisa a Mãe a cada passo se encontrava a chorar e dizia aquele homem meter-se pelo mundo a cabo cheio de guerras por lá o matam não o torno a ver agora já está satisfeito. Saberás que nos morreu o porco de ceva aquele que tu viste em pequenino que foi uma grande paixão que tivemos. Eu bem o queria largar por quinhentos em Donelo mas elas começaram a dizer que era barato e como estava muito gordo que causava admiração morreu com os acidentes. Comeu-o o Zé Serralheiro que mo pediu para gordura para a forja afinal mamou-o que anda tudo lazarado. A Mãe diz que tenhas muita cautela e não te metas em nada. Afinal o partido de Provezende já anda em concurso e agora é que era que caiu a Câmara mas tu largaste lá te avém. Só concorreram dois o que lá estava provisório e o outro. Consta-se que o de fora tem mais flores mas lá não fica. Este ano é que os Reis foram. Era a canalha toda a cantar que viva o senhor doutor na folhinha do confeito que é um homem de respeito e tem dinheiro para tudo.<br />Saudades da Maria e a bênção da Mãe e de mim teu Pai.                                               
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*'''Excerto 8 - O Quinto dia da Criação do Mundo'''
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Entrámos, mandou-me sentar, instalou-se à secretária, acendeu um cigarro e tirou algumas fumaças fundas, como que a encher o peito de energia.<br />Apertado na farda justa, congestionado, parecia mais um monte de gordura contrafeita do que a encarnação da autoridade. Mas era-o mesmo assim, afundado no cadeirão de espaldar e afiançado por dois retratos severos — o do Chefe do Estado e o do Presidente do Conselho — pendurados na parede a que dava costas. — Pois, como acabei de dizer, recebi ordens, e, embora me custe, o meu dever é cumpri-las…<br />— Evidentemente.<br />(…)<br />— Ora bem, o senhor doutor escreveu um livro…<br />— Escrevi vários…<br />— Refiro-me ao último…<br />— Que acaba de ser apreendido…<br />— De facto. Também recebi instruções para o retirar das livrarias cá da cidade. O que já fiz, de resto. E a propósito: de quantos exemplares foi a edição?<br />— Trezentos.<br />— Só?!<br />— Só.<br />— Parece que defende nele ideias subversivas… Eu confesso que ainda o não li…<br />— É pena. Pelo menos podia falar com conhecimento de causa.<br />— Isso era. Mas, para o caso que nos preocupa, pouco interessa. Defende ou não?<br />— Nem uma coisa, nem outra.<br />— Essa agora!<br />— O senhor comandante precisa de ler o livro.<br />— Vou ler.<br />— Então leia, e depois conversamos…<br />— Conversar, temos de conversar agora… Não é agradável o meu papel, creia, mas alguém tinha de estar aqui… Foi o Dr. que pagou as despesas da impressão?<br />— Claro! Quem havia de ser? Nem percebo onde quer chegar!<br />Vem lá indicado com todas as letras: edição do autor.<br />— Podia ser uma maneira airosa de fazer as coisas… E estar por detrás qualquer organização…<br />Confiado e até um pouco divertido a princípio, à medida que o interrogatório avançava, sentia crescer dentro de mim uma bruma de apreensão cada vez mais espessa. Que significava, afinal, tudo aquilo? Estava diante de uma formalidade ou metido num sarilho? E comecei a defender-me, iludindo as questões, a avaliar a segunda intenção das perguntas, a pesar as respostas, a divagar, não deixando ao mesmo tempo de tentar compreender a situação embaraçosa daquele homem a quem valera numa hora de aperto, e que via ainda ensacado no pijama de flanela, esquecido do posto e dos galões, desfigurado, a gemer como uma criança:<br />— Não me deixe morrer, pelo amor de Deus! Lembre-se que tenho quatro filhos para criar…
  
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*'''Excerto 9 - O Sexto dia da Criação do Mundo'''
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A censura férrea mantinha a imprensa silenciosa. Os escândalos não transpiravam, os crimes ficavam abafados, os próprios suicídios figuravam nos noticiários como mortes acidentais. Só mesmo a remar contra a corrente, de dentes cerrados, se podia salvar a dignidade. E agarrava-me aos remos com quanta energia tinha, ajudado pela coragem de Jeanne, também ela, não demorou muito, vítima da mesma sanha inquisitorial. Depois de conseguir a equivalência de formatura, doutorara-se e fora nomeada assistente do professor que na terra dela, enquanto leitor, a iniciara nos estudos de português. Mas os esbirros do poder estavam atentos. Na embrulhada de uma greve, em que se recusara a ser delatora dos próprios alunos, sem ser ouvida nem achada, foi demitida juntamente com outros colegas por um lacónico decreto. De nada lhe valeu a solidariedade unânime dos discípulos em face da prepotência. A lepra do marido contaminara a esposa.
  
A cadeia ficava ao lado da esquadra, encostada à muralha do castelo. Da janela gradeada do cubículo onde fui metido viam-se os telhados de meia cidade, uma nesga da fachada da Sé, as torres de várias igrejas, o cemitério e, mesmo em frente, ao fundo, já liberta na paisagem, airosa, a capela da Senhora da Encarnação, ao alto da escadaria, ufana da sua graça arquitectónica feita de pobreza lavada. Por detrás, lá longe, a aldeia da Abadia a branquejar na verdura dos montes onde costumava ir à caça…
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[https://drive.google.com/drive/folders/1W7f3Uw4ZLM8RyTbMrKjhm73bFTYYl28N?usp=sharing Nota: pode obter mais excertos de livros de Miguel Torga nesta pasta do Google Drive.]
Convencido ainda de que o caso se resolveria pelo melhor no dia seguinte, fazia por ignorar os surtos opressivos de uma sensação insidiosa de desamparo e de perigo, a distrair a atenção num jogo aplicado de referências e pormenorizações panorâmicas, enquanto esperava a todo o momento a visita do Dr. Olívio e do Tomé. Mas nenhum apareceu. O dia chegou ao fim, à hora de jantar o carcereiro trouxe uma marmita de comida, que mal cheirei, e a noite cerrou-se tão escura dentro de mim como lá fora. Não consegui dormir. Além da insónia habitual, a enxerga era dura, a cama tinha pouca roupa, e a cabeça parecia um motor a trabalhar. Rememorava ponto por ponto o interrogatório, a procurar medir-lhe o alcance, objectivava a estratégia da minha defesa, conjecturava, ouvia bater o coração na travesseira e as horas nos campanários, e mergulhava, meio perplexo meio fascinado, naquele abismo de solidão. Naturalmente cioso do meu isolamento, podia contudo, em qualquer altura e de moto próprio, saltar o muro individual e entrar no descampado colectivo. Bastava querer. E não raro assim acontecia. Às duas por três, dava gratuitamente as mãos, embora mais como personagem do que como pessoa, e entrava na roda fácil do convívio. Agora, porém, com pouca ou muita demora, fora privado de toda a iniciativa. Sem outro querer senão o de analisar a conjuntura dos factos, socialmente era apenas um pestífero de quarentena. E assistia, curioso, ao espectáculo inédito do espírito a saborear com relutância o gosto dum veneno provado pela primeira vez.
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O homem só se descobre a descobrir. E descobria até que ponto ele é capaz de reverter a seu favor os próprios malefícios da desgraça. Em vez de me deixar destruir pela força da agressão, surpreendia-me a desviar a brutalidade da energia desencadeada contra mim no exame minucioso das minhas íntimas reacções, exacerbadas pela acuidade reforçada dos sentidos acossados. Mal o dia rompeu, baldadamente torci o pescoço na gaiola, esperançado em ver surgir ao fundo da rua o vulto dos dois amigos. A manhã passou, a tarde morreu, e nada. Estava incomunicável, de certezíssima. Olarila! A ausência deles, acrescida do facto, igualmente estranho, de a empregada também não aparecer o dia inteiro a saber de mim e a dar-me notícias do consultório, só tinha uma explicação: ninguém podia contactar comigo. E entrei em pânico. O caso, afinal, era mais grave do que eu supunha.
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[[File:Logo25abril50anosleiturascensuradas.png|797px|center]]<br />                                             
Não se tratava de uma detenção episódica, de um simples gesto de intimidação. A coisa fiava mais fino. Metera-me em trabalhos. A ser como parecia, àquela hora já o meu quarto fora certamente vasculhado, lida a correspondência, apreendidos os livros considerados subversivos — e havia lá muitos — e levado igualmente o original do Diário… O mesmo Diário que tantos engulhos causara ao Lopes em cada fronteira. Mal calculava eu, nessa altura, que ainda viria a sentir idêntica mortificação por causa dele… Não pelos mesmos motivos, evidentemente. Embora a devassa da sua leitura pudesse agravar a minha situação, era uma bofetada suplementar que levavam. Perdido por dez… Temia, sim, a perda irremediável do manuscrito. Se, de facto, lhe tivessem deitado a mão, podia tirar dali o sentido. Depois de o utilizarem como matéria delituosa, levaria tal sumiço que nunca mais lhe poria a vista em cima. E era essa perspectiva que me desesperava. Sentia mais apreensão pelo destino dos papéis do que pelo meu. Um homem, enquanto está vivo, mesmo atado de pés e mãos, tem sempre o futuro à sua espera; um livro inédito destruído, é uma esperança eternamente perdida. Mas nada podia fazer. Apenas cerrar os dentes e aguardar.
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[[File:Wiki-nao-censurada-lapisazul.png|797px|center]]<br />
                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
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Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora, fiquei reduzido a uma cara fotografada de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover.
 
— Volta a cara… Espalma agora aqui a pata… Levanta-te…
 
Conhecia já de nome, até bem de mais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão —os famigerados «moinhos» — as vítimas renitentes à confissão, pias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançara mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava no rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde — um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia. Sádica e cientificamente concebida, a máquina de trituração funcionava em tais moldes de eficiência que as peças — tão impessoais que, embora porfiadamente o tentasse, a minha atenção não conseguia reter uma fisionomia — já nem sequer necessitavam de impulso motor. Actuavam automaticamente com a mesma brutalidade, fosse qual fosse o cascalho caído na moega que uma dissimulada e disseminada coorte de angariadores nunca deixava vazia. Bastava respirar por alguns momentos aquele ambiente de estagnada opressão, para o corpo e o espírito se sentirem despojados da semelhança anterior. Mas só depois de começar a ser rolado também na britadeira é que o perseguido ficava a conhecer, na exacta dimensão, até que ponto o homem pode humilhar o homem e a que extremos de baixeza é capaz de chegar um funcionário da crueldade. Em que sagrados recessos do eu uma perversidade aracnídea procura instilar a peçonha paralisante.
 
— És então escritor?
 
— Sou.
 
— E poeta também, pelos vistos…
 
— Também.
 
— Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta… Vais longe!
 
— Hei-de ir até onde puder
 
                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Não voltara a ser interrogado. E recordava as palavras cínicas do agente, à chegada:
 
— Verás que mudas de ideias…
 
Deixavam-me como que esquecido ali, a apodrecer lentamente, até que, maduro para uma confissão geral, pedisse eu próprio a barrela. Entretanto, iam certamente investigando… — Quero fazer declarações… — seria o termo de rendição esperado, logo diligentemente transmitido em cadeia por serventes e guardas. A engrenagem repressiva era um articulado de pretextos.
 
E, na ausência de culpa formada, ia buscar a matéria de facto à própria substância do medo. Aterrado, o réu inocente acusava-se ou acusava. O que valia o mesmo. Ou ficava justificada a reclusão ou proporcionara-se oportunidade para uma denúncia suplementar. Homem e médico, não ignorava que há organismos pusilânimes, que nem todas as quedas são traições. Na vida clínica encontrara criaturas de compleição rija que desmaiavam diante de uma gota de sangue, e cibos de gente que enfrentavam sem pestanejar a mais grave operação. Misterioso, o mundo físico raramente pautava as suas leis pelas normas coerentes da ordem moral.
 
Comido de fome, roubava; assado de desejo, violava. E só depois do escândalo dos actos vinha a reflexão, o arrependimento e o remorso. Por isso, a afirmação peremptória que fizera de que não cederia de maneira nenhuma, em boa verdade, significava apenas um firme propósito, que só o futuro podia sancionar. Embora de natureza sensível e queixosa, vivera sempre convencido de que aguentaria o juízo de qualquer fogueira, se a ela fosse arrastado pela exigência das minhas convicções. Simplesmente, nunca me convencera a sério de que acabaria por chegar a tal extremidade. E era essa evidência absurda que enfrentava agora, com toda a sua agudeza dilemática. Veríamos até que ponto seria capaz de a encarar de cabeça levantada. Por enquanto, não sentia o ânimo desfalecido. Pelo contrário. O osso ia ser duro de roer, mas estava decidido a rilhá-lo corajosamente, como outros o tinham feito antes de mim, porventura com mais mérito, risco e humildade. Outros que, sentados naquela mesma enxerga e diante daquelas mesmas paredes, haviam meditado, interrogado e respondido com igual desespero e expectativa.
 
Porquê, tamanha raiva prosélita? Até quando tantas e tais humilhações?
 
                                                      O Quinto dia da Criação do Mundo, de Miguel Torga
 

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  • Miguel Torga (1907 - 1995)

Miguel Torga, pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha, foi poeta, romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e médico. Ativista cívico, apoiou Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) nas suas candidaturas à Presidência da República contra os candidatos do regime. Intelectuais e autores portugueses e estrangeiros, como entre outros, Vicente Alexandre, Sophia de Mello Breyner Andresen e Jean-Baptiste Aquarone, apresentaram e apoiaram por três vezes a candidatura de Torga ao Prémio Nobel da Literatura.

  • Livros Censurados

Várias obras de Torga foram alvo de censura e nesta página da wiki vamos ler excertos de Bichos, A Criação do Mundo e Diário. Torga esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro O Quarto dia da Criação do Mundo, onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).

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  • Excerto 1 - Bichos, "Nero"
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra.
  • Excerto 2 - Bichos, "Mago"
Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem ação, bambo e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha de acabar semelhante vergonha! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! De resto, ali tinha já a primeira demonstração: ela a ressonar sozinha na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara dos seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre era a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e outras é que chegara àquela linda situação ...
  • Excerto 3 - Bichos, "Madalena"
Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha descarnada e hostil. Cada fragão de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns nos outros, num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além.
Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Já agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz. Dera o tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo - a nódoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava. Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a façanha, pô-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto.
- Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!...
Fez-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele.
  • Excerto 4 - Bichos, “Jesus”
Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.
E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.
Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.
A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.
E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe.
  • Poemas do livro - Diário IV:

TorgaPoemaEmDiario4-1.png TorgaPoemaEmDiario4-2.png TorgaPoemaEmDiario4-3.png TorgaPoemaEmDiario4-4.png
TorgaPoemaEmDiario4-5.png TorgaPoemaEmDiario4-6.png TorgaPoemaEmDiario4-7.png TorgaPoemaEmDiario4-8.png
Nota: nesta ficheiro txt pode encontrar estes e mais 16 poemas do livro Diário IV.

  • Excerto 5 - A Criação do Mundo – Os dois Primeiros Dias
Uma tarde o mestre deixou-se dormir à secretária. E, tirante o Reinaldo, que teve o descaramento de lhe ir pintar uns bigodes, todos faziam o possível para o não acordar. Era um feriado que nos caía do céu. Os grandes apanhavam moscas, e os pequenos seguiam o exemplo de cima, e ressonavam pacificamente. Às tantas, o Albertino entrou, como de costume, sem dar cavaco a ninguém. Vinha a modos de quem não quer a coisa, a fingir-se distraído. Mas assim que deu conta que o mestre dormia, chegou-se afoitamente às carteiras da frente com ar misterioso. Sentou-se na ponta do meu banco, ao lado do Jerónimo, e, perante o nosso assombro, tirou do bolso uma pistola de dois canos.                                       
  • Excerto 6 - O Terceiro dia da Criação do Mundo
Toda a região estava infestada de lepra. E, muito embora tivesse observado no hospital muitos infelizes atacados da mesma doença, causava-me impressão vê-los ali, disseminados como cogumelos podres na paisagem sã. Havia não sei que contradição alarmante entre a beleza do panorama grandioso e os corpos corroídos dos desgraçados. Orelhas desfeitas, mãos decepadas, pés desconformes, enquadrados numa moldura de olímpica serenidade, que o mar, lá na distância, rematava, o azul das águas a fundir-se no azul do céu.
— Então de que se queixa?
— Dos rins…
Não falava do outro mal que a devorava, que sabia sem cura e a que se acostumara. Perguntava a mim mesmo por que razão nenhum daqueles miserandos punha termo à existência, se libertava da maldição. Da memória de ninguém havia um caso de suicídio. Pelo contrário. Obstinados, persistentes, agarravam-se à vida, e acabavam por exibir naturalmente a pestilência. O Zé do Cardeal, conhecido em toda a região, já sem nariz, chegava ao ponto de trazer sempre no bolso um copo para beber vinho nas tabernas das terras por onde passava.
— Vamos lá ver…
Fazia de conta que não notava os nódulos encarniçados pelo tronco acima.
— Isto vai melhorar. Toma uns comprimidos…
  • Excerto 7 - O Quarto dia da Criação do Mundo
Meu querido filho:
Cá recebemos a tua carta que ficamos bem contentes por tu chegares são e salvo que estávamos em cuidos que te acontecesse alguma coisa a Mãe a cada passo se encontrava a chorar e dizia aquele homem meter-se pelo mundo a cabo cheio de guerras por lá o matam não o torno a ver agora já está satisfeito. Saberás que nos morreu o porco de ceva aquele que tu viste em pequenino que foi uma grande paixão que tivemos. Eu bem o queria largar por quinhentos em Donelo mas elas começaram a dizer que era barato e como estava muito gordo que causava admiração morreu com os acidentes. Comeu-o o Zé Serralheiro que mo pediu para gordura para a forja afinal mamou-o que anda tudo lazarado. A Mãe diz que tenhas muita cautela e não te metas em nada. Afinal o partido de Provezende já anda em concurso e agora é que era que caiu a Câmara mas tu largaste lá te avém. Só concorreram dois o que lá estava provisório e o outro. Consta-se que o de fora tem mais flores mas lá não fica. Este ano é que os Reis foram. Era a canalha toda a cantar que viva o senhor doutor na folhinha do confeito que é um homem de respeito e tem dinheiro para tudo.
Saudades da Maria e a bênção da Mãe e de mim teu Pai.
  • Excerto 8 - O Quinto dia da Criação do Mundo
Entrámos, mandou-me sentar, instalou-se à secretária, acendeu um cigarro e tirou algumas fumaças fundas, como que a encher o peito de energia.
Apertado na farda justa, congestionado, parecia mais um monte de gordura contrafeita do que a encarnação da autoridade. Mas era-o mesmo assim, afundado no cadeirão de espaldar e afiançado por dois retratos severos — o do Chefe do Estado e o do Presidente do Conselho — pendurados na parede a que dava costas. — Pois, como acabei de dizer, recebi ordens, e, embora me custe, o meu dever é cumpri-las…
— Evidentemente.
(…)
— Ora bem, o senhor doutor escreveu um livro…
— Escrevi vários…
— Refiro-me ao último…
— Que acaba de ser apreendido…
— De facto. Também recebi instruções para o retirar das livrarias cá da cidade. O que já fiz, de resto. E a propósito: de quantos exemplares foi a edição?
— Trezentos.
— Só?!
— Só.
— Parece que defende nele ideias subversivas… Eu confesso que ainda o não li…
— É pena. Pelo menos podia falar com conhecimento de causa.
— Isso era. Mas, para o caso que nos preocupa, pouco interessa. Defende ou não?
— Nem uma coisa, nem outra.
— Essa agora!
— O senhor comandante precisa de ler o livro.
— Vou ler.
— Então leia, e depois conversamos…
— Conversar, temos de conversar agora… Não é agradável o meu papel, creia, mas alguém tinha de estar aqui… Foi o Dr. que pagou as despesas da impressão?
— Claro! Quem havia de ser? Nem percebo onde quer chegar!
Vem lá indicado com todas as letras: edição do autor.
— Podia ser uma maneira airosa de fazer as coisas… E estar por detrás qualquer organização…
Confiado e até um pouco divertido a princípio, à medida que o interrogatório avançava, sentia crescer dentro de mim uma bruma de apreensão cada vez mais espessa. Que significava, afinal, tudo aquilo? Estava diante de uma formalidade ou metido num sarilho? E comecei a defender-me, iludindo as questões, a avaliar a segunda intenção das perguntas, a pesar as respostas, a divagar, não deixando ao mesmo tempo de tentar compreender a situação embaraçosa daquele homem a quem valera numa hora de aperto, e que via ainda ensacado no pijama de flanela, esquecido do posto e dos galões, desfigurado, a gemer como uma criança:
— Não me deixe morrer, pelo amor de Deus! Lembre-se que tenho quatro filhos para criar…
  • Excerto 9 - O Sexto dia da Criação do Mundo
A censura férrea mantinha a imprensa silenciosa. Os escândalos não transpiravam, os crimes ficavam abafados, os próprios suicídios figuravam nos noticiários como mortes acidentais. Só mesmo a remar contra a corrente, de dentes cerrados, se podia salvar a dignidade. E agarrava-me aos remos com quanta energia tinha, ajudado pela coragem de Jeanne, também ela, não demorou muito, vítima da mesma sanha inquisitorial. Depois de conseguir a equivalência de formatura, doutorara-se e fora nomeada assistente do professor que na terra dela, enquanto leitor, a iniciara nos estudos de português. Mas os esbirros do poder estavam atentos. Na embrulhada de uma greve, em que se recusara a ser delatora dos próprios alunos, sem ser ouvida nem achada, foi demitida juntamente com outros colegas por um lacónico decreto. De nada lhe valeu a solidariedade unânime dos discípulos em face da prepotência. A lepra do marido contaminara a esposa.

Nota: pode obter mais excertos de livros de Miguel Torga nesta pasta do Google Drive.

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