Difference between revisions of "Torga Miguel - Livros Proibidos"
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− | Várias obras de Torga foram alvo de censura e nesta página da wiki vamos ler excertos de '''Bichos''', '''A Criação do Mundo''' e '''Diário'''. Torga esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro '''O Quarto dia da Criação do Mundo''', onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).<br /><br />[[File:Torga Miguel-Bichos-Despacho-da-Censura-excerto.jpg|514px | + | Várias obras de Torga foram alvo de censura e nesta página da wiki vamos ler excertos de '''Bichos''', '''A Criação do Mundo''' e '''Diário'''. Torga esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro '''O Quarto dia da Criação do Mundo''', onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).<br /><br />[[File:Torga Miguel-Bichos-Despacho-da-Censura-excerto.jpg|514px]][[File:TorgaMiguel-Diario-IV-volume-Censura-excerto.jpg]]<br />[[File:Torga Miguel-ACriacaoDoMundo-Censura-excerto-.jpg|900px|center]] |
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Revision as of 20:22, 29 February 2024
- Miguel Torga (1907 - 1995)
Miguel Torga, pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha, foi poeta, romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e médico. Ativista cívico, apoiou Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) nas suas candidaturas à Presidência da República contra os candidatos do regime. Intectuais e autores portugueses e estrangeiros, como entre outros, Vicente Aleixandre, Sophia de Mello Breyner Andresen e Jean-Baptiste Aquarone, apresentaram e apoiaram por três vezes a candidatura de Torga ao Prémio Nobel da Literatura.
- Livros Censurados
- Livros Censurados
Várias obras de Torga foram alvo de censura e nesta página da wiki vamos ler excertos de Bichos, A Criação do Mundo e Diário. Torga esteve uns meses presos no Aljube (1939/1940) por ter publicado o livro O Quarto dia da Criação do Mundo, onde denunciava os regimes fascistas de Franco (Espanha) e de Mussolini (Itália).
- Excerto 1 - Bichos, "Nero"
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira. Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra.
- Excerto 2 - Bichos, "Mago"
Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem ação, bambo e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha de acabar semelhante vergonha! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! De resto, ali tinha já a primeira demonstração: ela a ressonar sozinha na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara dos seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre era a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e outras é que chegara àquela linda situação...
- Excerto 3 - Bichos, "Madalena"
Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha descarnada e hostil. Cada fragão de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns nos outros, num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além.
Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Já agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz. Dera o tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo - a nódoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava. Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a façanha, pô-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto.
- Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!...
Fez-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele.
- Excerto 4 - Bichos, “Jesus”
Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.
E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.
Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.
A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.
E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe
- Poemas do livro - Diário IV:
Nota: nesta ficheiro txt pode encontrar estes e mais 16 poemas do livro Diário IV.
- Excerto 5 - A Criação do Mundo – Os dois Primeiros Dias
Uma tarde o mestre deixou-se dormir à secretária. E, tirante o Reinaldo, que teve o descaramento de lhe ir pintar uns bigodes, todos faziam o possível para o não acordar. Era um feriado que nos caía do céu. Os grandes apanhavam moscas, e os pequenos seguiam o exemplo de cima, e ressonavam pacificamente. Às tantas, o Albertino entrou, como de costume, sem dar cavaco a ninguém. Vinha a modos de quem não quer a coisa, a fingir-se distraído. Mas assim que deu conta que o mestre dormia, chegou-se afoitamente às carteiras da frente com ar misterioso. Sentou-se na ponta do meu banco, ao lado do Jerónimo, e, perante o nosso assombro, tirou do bolso uma pistola de dois canos.
- Excerto 6 - O Terceiro dia da Criação do Mundo
Toda a região estava infestada de lepra. E, muito embora tivesse observado no hospital muitos infelizes atacados da mesma doença, causava-me impressão vê-los ali, disseminados como cogumelos podres na paisagem sã. Havia não sei que contradição alarmante entre a beleza do panorama grandioso e os corpos corroídos dos desgraçados. Orelhas desfeitas, mãos decepadas, pés desconformes, enquadrados numa moldura de olímpica serenidade, que o mar, lá na distância, rematava, o azul das águas a fundir-se no azul do céu.
— Então de que se queixa?
— Dos rins…
Não falava do outro mal que a devorava, que sabia sem cura e a que se acostumara. Perguntava a mim mesmo por que razão nenhum daqueles miserandos punha termo à existência, se libertava da maldição. Da memória de ninguém havia um caso de suicídio. Pelo contrário. Obstinados, persistentes, agarravam-se à vida, e acabavam por exibir naturalmente a pestilência. O Zé do Cardeal, conhecido em toda a região, já sem nariz, chegava ao ponto de trazer sempre no bolso um copo para beber vinho nas tabernas das terras por onde passava.
— Vamos lá ver…
Fazia de conta que não notava os nódulos encarniçados pelo tronco acima.
— Isto vai melhorar. Toma uns comprimidos…
- Excerto 7 - O Quarto dia da Criação do Mundo
Meu querido filho:
Cá recebemos a tua carta que ficamos bem contentes por tu chegares são e salvo que estávamos em cuidos que te acontecesse alguma coisa a Mãe a cada passo se encontrava a chorar e dizia aquele homem meter-se pelo mundo a cabo cheio de guerras por lá o matam não o torno a ver agora já está satisfeito. Saberás que nos morreu o porco de ceva aquele que tu viste em pequenino que foi uma grande paixão que tivemos. Eu bem o queria largar por quinhentos em Donelo mas elas começaram a dizer que era barato e como estava muito gordo que causava admiração morreu com os acidentes. Comeu-o o Zé Serralheiro que mo pediu para gordura para a forja afinal mamou-o que anda tudo lazarado. A Mãe diz que tenhas muita cautela e não te metas em nada. Afinal o partido de Provezende já anda em concurso e agora é que era que caiu a Câmara mas tu largaste lá te avém. Só concorreram dois o que lá estava provisório e o outro. Consta-se que o de fora tem mais flores mas lá não fica. Este ano é que os Reis foram. Era a canalha toda a cantar que viva o senhor doutor na folhinha do confeito que é um homem de respeito e tem dinheiro para tudo.
Saudades da Maria e a bênção da Mãe e de mim teu Pai.
- Excerto 8 - O Quinto dia da Criação do Mundo
Entrámos, mandou-me sentar, instalou-se à secretária, acendeu um cigarro e tirou algumas fumaças fundas, como que a encher o peito de energia.
Apertado na farda justa, congestionado, parecia mais um monte de gordura contrafeita do que a encarnação da autoridade. Mas era-o mesmo assim, afundado no cadeirão de espaldar e afiançado por dois retratos severos — o do Chefe do Estado e o do Presidente do Conselho — pendurados na parede a que dava costas. — Pois, como acabei de dizer, recebi ordens, e, embora me custe, o meu dever é cumpri-las…
— Evidentemente.
(…)
— Ora bem, o senhor doutor escreveu um livro…
— Escrevi vários…
— Refiro-me ao último…
— Que acaba de ser apreendido…
— De facto. Também recebi instruções para o retirar das livrarias cá da cidade. O que já fiz, de resto. E a propósito: de quantos exemplares foi a edição?
— Trezentos.
— Só?!
— Só.
— Parece que defende nele ideias subversivas… Eu confesso que ainda o não li…
— É pena. Pelo menos podia falar com conhecimento de causa.
— Isso era. Mas, para o caso que nos preocupa, pouco interessa. Defende ou não?
— Nem uma coisa, nem outra.
— Essa agora!
— O senhor comandante precisa de ler o livro.
— Vou ler.
— Então leia, e depois conversamos…
— Conversar, temos de conversar agora… Não é agradável o meu papel, creia, mas alguém tinha de estar aqui… Foi o Dr. que pagou as despesas da impressão?
— Claro! Quem havia de ser? Nem percebo onde quer chegar!
Vem lá indicado com todas as letras: edição do autor.
— Podia ser uma maneira airosa de fazer as coisas… E estar por detrás qualquer organização…
Confiado e até um pouco divertido a princípio, à medida que o interrogatório avançava, sentia crescer dentro de mim uma bruma de apreensão cada vez mais espessa. Que significava, afinal, tudo aquilo? Estava diante de uma formalidade ou metido num sarilho? E comecei a defender-me, iludindo as questões, a avaliar a segunda intenção das perguntas, a pesar as respostas, a divagar, não deixando ao mesmo tempo de tentar compreender a situação embaraçosa daquele homem a quem valera numa hora de aperto, e que via ainda ensacado no pijama de flanela, esquecido do posto e dos galões, desfigurado, a gemer como uma criança:
— Não me deixe morrer, pelo amor de Deus! Lembre-se que tenho quatro filhos para criar…
- Excerto 9 - O Sexto dia da Criação do Mundo
A censura férrea mantinha a imprensa silenciosa. Os escândalos não transpiravam, os crimes ficavam abafados, os próprios suicídios figuravam nos noticiários como mortes acidentais. Só mesmo a remar contra a corrente, de dentes cerrados, se podia salvar a dignidade. E agarrava-me aos remos com quanta energia tinha, ajudado pela coragem de Jeanne, também ela, não demorou muito, vítima da mesma sanha inquisitorial. Depois de conseguir a equivalência de formatura, doutorara-se e fora nomeada assistente do professor que na terra dela, enquanto leitor, a iniciara nos estudos de português. Mas os esbirros do poder estavam atentos. Na embrulhada de uma greve, em que se recusara a ser delatora dos próprios alunos, sem ser ouvida nem achada, foi demitida juntamente com outros colegas por um lacónico decreto. De nada lhe valeu a solidariedade unânime dos discípulos em face da prepotência. A lepra do marido contaminara a esposa.
Nota: pode obter mais excertos de livros de Miguel Torga nesta pasta do Google Drive.