Difference between revisions of "Andrade, Eugénio - Livros Proibidos"

From Wikipédia de Autores Algarvios
Jump to: navigation, search
Line 2: Line 2:
 
[[File:EugéniodeAndrade.JPG|164px]] [[File:Palavras interditas.jpg|189px]]
 
[[File:EugéniodeAndrade.JPG|164px]] [[File:Palavras interditas.jpg|189px]]
  
O título '''As Palavras Interditas''' [tem] um duplo sentido: o mais imediato que reenvia para o contexto censório da época; e outro mais profundo em que a associação da palavra ao interdito tem algo de sagrado, o que dá ao leitor uma escolha que nunca reduz o poema ao imediato, embora de modo algum complique a sua compreensão. E vem daqui a outra qualidade desta poesia, que é a sua capacidade de comunicar com o leitor, muitas vezes sem que este se aperceba do que se encontra para lá dessa aparente facilidade de expressão.(Pág. 11,12)<br />
+
O título '''As Palavras Interditas''' [tem] um duplo sentido: o mais imediato que reenvia para o contexto censório da época; e outro mais profundo em que a associação da palavra ao interdito tem algo de sagrado, o que dá ao leitor uma escolha que nunca reduz o poema ao imediato, embora de modo algum complique a sua compreensão. (Pág. 11,12)<br />
 
https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=23830277
 
https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=23830277
  
Line 28: Line 28:
 
<br />
 
<br />
 
<br />
 
<br />
No  poema '''“Sobre o Tejo”''', o poeta aponta especificamente para um conflito, a Guerra Colonial Portuguesa, que decorreu nas frentes de Moçambique, Guiné e Angola, entre 1961 e 1974. O texto concentra-se num soldado que, sendo anónimo, representa todo um universo de jovens recrutas, tantas vezes alheios às razões de um combate que não é o seu:<br />
 
  
O poema captura bem a atmosfera de tristeza sentida na despedida dos barcos de guerra, novas naus que partiam ao vento da retórica imperial, carregadas de militares, e regressavam com muitos deles em caixões de pinho. Expressões como “triste (...) chuva”,
 
“sílabas escuras”, “luz de desterro” ou “luz das fardas” contrastam flagrantemente com o Tejo
 
em tempo de paz, descrito como um “lugar de amor” e de desejo. Pela sua brevidade,
 
singeleza e rigor; pela quase ausência de referentes de localização (só é mencionado o Tejo);
 
pelo desespero amordaçado, ao sabor do ritmo lânguido, que quase nenhuma vírgula
 
intrometida sobressalta, o poema ganha o ânimo e a dimensão de um protesto não apenas
 
contra um conflito específico, mas contra toda e qualquer guerra
 
 
<br />
 
<br />
 
*"Sobre o Tejo"<br />
 
*"Sobre o Tejo"<br />
Line 53: Line 45:
 
É tempo de dizer adeus.<br />
 
É tempo de dizer adeus.<br />
 
<br />
 
<br />
https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/4323/1/umapalavrapreocupada.pdf<br />
+
 
 +
Neste  poema '''Sobre o Tejo”'', o poeta aponta especificamente para um conflito, a Guerra Colonial Portuguesa, que decorreu nas frentes de Moçambique, Guiné e Angola, entre 1961 e 1974. O texto concentra-se num soldado que, sendo anónimo, representa todo um universo de jovens recrutas, tantas vezes alheios às razões de um combate que não é o seu:<br />
 +
 
  
 
AS PALAVRAS INTERDITAS<br />
 
AS PALAVRAS INTERDITAS<br />

Revision as of 16:15, 15 February 2024

EugéniodeAndrade.JPG Palavras interditas.jpg

O título As Palavras Interditas [tem] um duplo sentido: o mais imediato que reenvia para o contexto censório da época; e outro mais profundo em que a associação da palavra ao interdito tem algo de sagrado, o que dá ao leitor uma escolha que nunca reduz o poema ao imediato, embora de modo algum complique a sua compreensão. (Pág. 11,12)
https://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=23830277


  • Urgentemente


É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.



  • "Sobre o Tejo"


Que soldado tão triste esta chuva
sobre as sílabas escuras do Outono
sobre o Tejo as últimas barcas
sobre as barcas uma luz de desterro.

Já foi lugar de amor o Tejo a boca
as mãos foram já fogo de abelhas
não eram o corpo então dura e amarga
pedra do frio.

Sobre o Tejo cai a luz das fardas
É tempo de dizer adeus.

Neste poema 'Sobre o Tejo”, o poeta aponta especificamente para um conflito, a Guerra Colonial Portuguesa, que decorreu nas frentes de Moçambique, Guiné e Angola, entre 1961 e 1974. O texto concentra-se num soldado que, sendo anónimo, representa todo um universo de jovens recrutas, tantas vezes alheios às razões de um combate que não é o seu:


AS PALAVRAS INTERDITAS


Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas, 1951 (1.ª edição)
Edição utilizada: Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2017
Para saber mais:
https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/4323/1/umapalavrapreocupada.pdf